afinal o que canto?
as roseiras que trepei
nos imensos regaços
que me aceitaram
quando vendia a palavra
o murmúrio da fonte
o doce marulhar
das cascatas de espuma
que moram no rio
da minha esperança?
que canto agora?
a fuga da enxada
a mulher apetecida
nas aguas quietas do ribeiro
a galinha roubada
fruta alheia cobiçada
a terra prenhe
o estrume fecundo
o casamento dos pássaros?
será que canto o corpo-oferta
da lua de milho
ou o cheiro do feno
debaixo do rubro sol
a esconder-se
no empobrecer da tarde?
canto a garganta da terra
dos outros ferida
a dor do mar imenso
porque derradeiro
nesta pátria infinita
sem rumos
sempre carpida
dorida de ossos velhos
de séculos a brincar
canto o parto da mãe
natureza que floresce
com aquele jeito universal
e cósmico que a gente conhece
canto o mar
essa ode de vida
e os olhos de mulheres que não muitas
espraiando nas margens
os olhos de Eva
e o corpo correndo
para o mar que é de todos
canto o martírio das gentes
a posse insolente
a perseguição grotesca
os receios vulgares
o medo da palavra
afinal a enxada
a brandir
em terra quente
ou a pedra insolente
que é esta vida
plantada
neste nicho cósmico
canto as aves ordeiras do céu
os peixes vagabundos
deste mar revolto
as flores que amanhecem
o orvalho que cai
dos olhos daquela mulher
primeira que busca
no cesto da angústia
o pão derradeiro
canto ou finjo que canto
a alegria do universo
a mão de Deus
o esquecimento do homem
correndo inseguro
no rio morto
que nasce na fábrica
e corre ao lado da árvore morta
canto a alegria
do homem-dinheiro
e visto-lhe a pele
numa tarde qualquer
até que a noite me benza
olho as estrelas
neste mar de galáxias
canto o universo em expansão
e choro este planeta
onde acaba o pão
canto a arte-silêncio
o pincel do poeta
as cores da água ardente
o desespero da tela
o violino que mora em mim
e mais gente
a sombra
de Vénus do amanhã
imploro na noite
a solidão
das minhas companheiras
que se chamam de cegueira
de loucura
de vontade de fugir
estar quieto pela vez primeira
abraçar a noite
amar quase todas as mulheres
de corpo-roseira
e sorver-lhes o ventre macio
mastigar-lhes os cumes dos seios
morder-lhes segredos
nas orelhas da noite
com o desenho da palavra
que por vezes tarda
cantar com a mente
é coisa vã
cantar com a pena
que não é sã
é gemer na rua deserta
ou pensar pessoas
que não estão
na morada certa
cantar o sonho
só as aves o fazem
porque têm sempre migalhas
e um porvir
longe desta humanidade
que fado é este canto
de cordas tristes
em gargantas sequiosas?
 

Adriano Pinho
 
Membro da SPA (Sociedade Portuguesa de Autores)
 

Menu

E-Mail

Todos os direitos reservados ao autor Não sendo permitido publicação sem prévia autorização do mesmo

Amigos Poetas

+Poemas

 

                   

Livro de visitas_1            _Livro de visitas 2