Moram nos meus ouvidos
tiros ensurdecedores
nos meus olhos mora o medo
do corpo dorido
do cheiro de carne queimada
em napalm
nos sítios de Quitexe
na estrada de Nambuangongo
na serra do Uíge, sei lá...
por onde andei vestido
de medo e de camuflado
de angústias intermináveis
dentro das noites
feitas anos
de dor e de porvir
sem qualquer sentido
mora nos meus olhos
a sede das nossas bocas
cercadas de incêndios
feitos de seco capim
e volta às narinas
o odor de carne assada
de quando em vez
bailam na minha mente
o baleado inocente
como se fosse soldado
com canhangulo treinado
e colegas tombados
na frente de tiros
certeiros
a noite chega e depressa
arrepia
quem acordado vigia
e depois não adormece
porque a floresta estremece
ao acordar em outro dia
e vem mais um tiro
para amedrontar o pelotão
encostado na mata escura
onde ninguém se vê
ainda que a um palmo
da nossa mão
sente-se a nostalgia
o medo e a cobardia
de tudo querer abandonar
porque a guerra vai demorar
vejo cubatas incendiadas
e gente a fugir depressa
das bombas que os Efes
vão certamente largar
no alto do monte
um capitão "turra"
dá ordens para atirar
são mais de cinquenta
com armas de metralhar
é o inferno a chegar!
projécteis passam
pelas nossas cabeças
durante horas sem parar
tinha morrido
pela calada da noite
um homem
que quis passar
na picada armadilhada
Santo Deus, já não podemos voltar!
tantos cenários
moram nos meus olhos
tantos sons armazenados
tantos cheiros retidos
tantos medos vividos
que hoje não os sei contar
afinal porquê
para quem
se a guerra não vai acabar?

Adriano Pinho
 
Membro da SPA (Sociedade Portuguesa de Autores)
 

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