Escevi, (não sei se poderei classificar de poema ou prosa poética... mas isso também não interessa), há mais de 25 anos e hoje, nem sei bem porquê, resolvi publicá-lo aqui. 

Albertino Galvão

Lisboa-Portugal

          Em quase todos os aglomerados populacionais, situem-se eles a Sul Centro ou Norte, há sempre, pelo menos um, personagem castiço que, quer seja pelas suas características forma de estar na vida ou no relacionamento com a comunidade, atrai a simpatia ou antipatia geral. No caso; a velha Maria de quem aqui falo, era uma senhora sem morada certa que vagueava pelas ruas, mendigando, e que granjeava a simpatia de todos sem que para isso necessitasse fazer algo de extraordinário. Não se sabia a idade nem a origem, nem tão pouco a razão que a levara à mendicidade pois via-se nela, pela forma como se expressava, educação, inteligência e lucidez. Quando ocorreu a sua morte, (há cerca de 30 anos), todos quantos a conheciam, (e não eram poucos), condoeram-se com o facto. Quis com este meu trabalho fazer-lhe uma pequena e justa homenagem, valendo-me da realidade mas também da ficção. Aqui também falo, (ainda que ao de leve), no Farrusco o velho cão. Ora… o Farrusco era um cão muito especial que tal como a velha Maria era um nobre vagabundo acarinhado e estimado por todos muito em particular pelas crianças. Lembro-me do Farrusco acompanhar o meu filho mais velho e as outras crianças da mesma idade, na altura com 7 ou 8 anos de idade, de e para a escola, como sendo o amigo mais velho que os protegia de tudo e de todos. Era habitual encontrar-se o Farrusco ao Domingo na missa porque os miúdos iam à catequese, no cemitério quando havia qualquer funeral, no mercado, etc., etc., há!...o Farrusco só atravessava as ruas nas respectivas passadeiras. O Farrusco, (se escrevo Farrusco com letra grande é porque o velho cão foi merecedor disso), morreu de velho e teve um funeral condigno.

 

 

 

Velha Maria
(A todas as mulheres vítimas da solidão e indigência)



Tamborilando, ritmicamente,
A chuva caía, persistente e fria,
Embaciando os contrastes dos vitrais
Da Igreja Matriz. Mesmo em frente,
Abrigados pelos beirais da Abadia,
Tiritavam, ensopados, dois pardais.
Mais abaixo, enroscado junto à porta
Com entalhes de madeira carcomidos...
Aninhou-se o Farrusco, o velho cão…
Que enquadrado pelos motivos esculpidos
Lembrava um quadro, (natureza viva),
Obra comungada por pintor e artesão.
O casarão que se via, sobranceiro,
Iluminado pelos raios fascinantes
Que rasgavam a noite, periclitantes…
Lembrava um monstro feio e dantesco,
Conspurcando os ramos do velho sobreiro
Com vómitos de flashes, num esgar grotesco.
Na praceta, entre a fonte e o mercado,
Inerte… um vulto de invulgar aspecto.
Limpei melhor o vidro embaciado
Da minha janela, e acabei por perceber
Que esse vulto era um corpo de mulher.
Reconheci o lenço, a velha capa, o xaile,
A trouxa, as botas e o avental.
Franzindo as sobrancelhas tento, em vão, cortar
Os ângulos e a distância que me confundem.
Com a mão em pala, sobre os olhos, tento afastar
A tristeza que se apossa de minha alma…
Essa coisa que me esmaga, me espalma,
E cujas forças eu não sei como se fundem.
Ao longe…
A sirene duma ambulância,
Violando abruptamente o silêncio
Que a chuva por momentos permitiu,
Espalha gritos e sons em dissonância.
Da rua, oiço o tio Inocêncio dizer…

Ninguém sabe, ninguém viu.

Conflituando… Os meus sentidos
Disputam dúbias interrogações.
Sinto silvar os ouvidos,
Secar amargos na boca…
Cuspo saliva já choca,
Vomito e tusso cogitações.
Olho o relógio e, nesse instante,
A ambulância pára bruscamente,
Saindo dela homens agitados e imbuídos
Dessa esperança que se move intransigente
Contra o tempo.
Esse tempo que demarca nossas vidas,
Que legisla, decreta e comanda…
Absorvendo como esponja
Nossos sonhos triturados e diluídos.
Esse mesmo tempo
Que a cada momento nos vai lembrando,
Ser a vida curta e a morte certa.

Cortando o meu raciocínio
E profanando a fé que em mim morava,
Escuto uma voz roufenha dizer…

Morreu a velha Maria, coitada!

Baixei os olhos, impotente,
E exclamei em jeito de oração…
Descansa em Paz e que Deus te tenha
*Maria de Jesus Salvação. * Nome fictício

Abgalvão
 

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Som - www.waldirsilva.com.br

 


 

 

 

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