ERA UMA CASA PEQUENA


(um poema de saudade)


Era uma casa pequena
Perdida no arvoredo
Onde a noite vinha cedo
Contudo calma, serena...
Crescer lá, valeu a pena!
- Como pássaros no ninho
Havia sempre um carinho
Por vezes quase escondido
Mas de que vejo o sentido
Nesta fase do caminho.


Tinha um eirado (1) na frente
Captando da chuva as águas
Já que este captar de mágoas
Esse é sempre com a gente...
Uma eira (2) reluzente
Tanta vez de trigo plena!
Onde a voz do dono ordena
Aos animais a debulha
E hoje a alma se orgulha:
- Era uma casa pequena!


Tinha à entrada uma sala
Que do convívio era o centro
Fora a cozinha, mais dentro,
Dois quartos a ladeá-la.
Um celeiro (3) a recheá-la
Um sobrado (4), aonde o medo
Se deitava no degredo
Dum longe-a-longe a visita,
Onde uma casa medita
Perdida no arvoredo.


Três irmãs, o pai, a mãe
Sempre alheios à quezília;
De paz, eram a família
Onde me integrei também.
Ensinamentos de Bem
Às vezes ditos de azedo,
Passavam entre o folhedo
Descendo sobre os petizes,
Mas eram dias felizes
Onde a noite vinha cedo.


Em chegando a lua cheia
Recordo, à luz do luar,
Ia até ao almanchar (5)
Com meus sonhos na ideia.
Mesmo sendo um grão de areia
Achava... valia a pena
Não ter a alma pequena
Mudar o mundo, em magia!
Enquanto a noite caía
Contudo calma, serena...


Nem luz nem água corrente
Naquela fase da vida!
Um candeeiro de torcida (6)
Mal alumiava a gente...
Um alguidar (7) de presente
Pra tomar banho... era a cena...
Qual TV (8) ou qual antena
Nos faziam companhia?!!!
Mas digo com alegria:
Crescer lá, valeu a pena!


Ao fundo como horizonte
Quatro moinhos-ruinas (9)
Onde íamos traquinas
Subir tanta vez o monte:
Duma figueira defronte
Do mais recente moinho
"Esquecendo" a guarda ao cantinho
Figos a gente apanhava,
Depois à noite deitava
Como pássaros no ninho.


Nunca tivemos fartura,
Era-nos longe esse nome;
Também não havia fome
Nem tão-pouco desventura.
Vida de campo era dura
Enxada, arado e ancinho...
O desbravar dum caminho
D'altos e baixos, revezes,
Mas muitas, muitas das vezes,
Havia sempre um carinho.


Aprendendo bem na escola
Quase nem estudava os livros!
E arranjavam-me motivos
Para pegar na sachola.
Era então essa a bitola:
Trabalhar faz mais sentido
Que ter um tempo mais "lido"
(Isso era pra gente rica!)
E o livro de estudo fica
Por vezes quase escondido...


Afluem-me hoje pensamentos
Sem ver porque é que era assim...
Plantei um outro jardim
Analiso sentimentos.
Formas de estar... Os lamentos
Melhor estarem no olvido;
Mais vale ter entendido
Que nós não somos iguais
E regras houve nos pais
Mas de que vejo o sentido...


Dizem... somos saudosistas!
A ver tal, sou o primeiro.
Da saudade vem-me um cheiro,
Prossigo nas mesmas pistas.
Ah minha casa que distas
Só uns metros onde alinho
Este abraço no carinho
Das distantes Primaveras!
- Na saudade tu me esperas
Nesta fase do caminho.


Joaquim Sustelo
(em MURMÚRIOS NO TEMPO)


(1) cercado em pedra acimentada que servia para captar
a água das chuvas. O chão era desnivelado e convergia para
uma ampulheta, normalmente quadrada, que ia fornecer a cis-
terna de água. Essa água normalmente dava para o consumo
da casa durante todo o ano

(2) a eira, um pouco mais longe do que o eirado, era onde se
debulhavam os cereais: trigo, cevada, aveia...
Na eira, ou no eirado, era onde se faziam as célebres desfolhadas, onde o achar de uma massaroca de milho de cor diferente dava direito a um beijo. O rapaz que encontrava a massaroca aproveitava para escolher a rapariga a quem dar o esse beijo

(3) O celeiro ficava ao lado da cozinha. Era onde se guardava
os cereais, as tinas do azeite, as barricas dos figos, etc.

(4) na minha casa, ao sobrado acedia-se por uma escada móvel.
Pouco se ia ao sobrado. Mas não deixava de se guardar lá uns
sacos, ou sacas, como se dizia no Algarve, pesadas, que bastante trabalho davam a carregar!

(5) o almanchar era uma cerca, à volta da casa ou a um dos lados dela, onde se estendiam as esteiras, com figos ou amêndoas para secar.

Muitas vezes, era no almanchar que se namorava, às escondidas dos pais

(6) o candeeiro era a petróleo e tinha uma torcida de pano que ia ardendo. De vez em quando era preciso "dar ao registo", isto é, rodar uma rodinha e levantar a torcida

(7) toda a gente sabe o que é um alguidar. Era nele que se tomava banho nesse tempo, pois não havia água canalizada

(8) a TV (a preto) surgiu em Portugal em 1957. Mais ano menos ano, não estarei enganado... Rádio (telefonia) havia, mas pouco: a do meu avô, que morava paredes meias connosco, foi a segunda lá no sítio. As pessoas da vizinhança vinham ouvir rádio, programas como por exemplo "Os companheiros
da alegria"

(9) os 4 moinhos do Malhão, de onde se avista Monchique, Lagoa, Armação e de Pera, etc. etc, (como digo no meu livro "Silves, uma viagem pelo Concelho") muito visitados por turistas, mas que continuam em ruinas.

 

Imagem encontrada na net sem autoria _ Formatada por Cecília

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