O HOMEM E O SORVETE

 

Jota Há

 

Abro os olhos, retomo consciência de que estou vivo – deveria ser alegre a manhã –, e logo depois disso vejo claramente a minha situação.

Qual fosse o destino gostaria de sabê-lo já. Assim não perderia tanto tempo, paciência e horas de sono, o meu céu na terra. Até sofrimentos eu não iria desperdiçar. Mas há de se contemplar o inferno também, e eu convivo com seus demônios, e, infelizmente não me divirto como deveria. E caminho indeciso, entre o céu e a terra; pulo em ambos como se pisasse em brasas. Porém, neste momento que retorno a batalha infernal, a única coisa que me recorda o céu são as recordações.

Recordar, evitar pensamentos apenas. Como foi ontem mesmo? Não me lembro. Deve ter sido assim: cheguei a casa, fui ao banheiro, tomei café, li um jornal, não, não li, não havia jornal, fumei um cigarro, não, não fumei, não tinha cigarros, televisão, não, não assisti, um pouco de sono melancólico e triste que espera o fim do mundo e que deseja, ainda que pouco, ter o gosto de acordar. Mas agora estou aqui, como outras tantas vezes estarei. Posso estar sonhando. Grande vantagem estar dormindo e sonhando e estar aqui, neste maldito ponto-de-ônibus. Mas não é sonho e, sinceramente, não sei se agradeço, e nem imaginaria a quem. De novo eu desço a cruz, tornado humano após um pouco de sono. Às vezes recebo alguns carinhos. Será honesto recebê-los? Esses carinhos amigamente são sinceros demais, e se não formos sinceros para recebê-los eles ferem como areia na queimadura. Mais tormento que alívio; mais enjôo que doçura.

Ultimamente tenho sentido vontade de organizar minha vida, ou o que resta dela, encontrei um bom método: escrevo tudo o que devo fazer nos próximos dias, porém sem a brevidade de anotações, e nem a formalidade da agenda. Apenas escrevo o que devo fazer, quando e até como executar. Assim, não perco tempo com as obrigações mais que o necessário. E consiste apenas disso a vantagem: as obrigações continuam não sendo feitas a seu prazo pensado, e nem com a determinação necessária; só não perco mais tempo do que já perdia sem anotar nada; confesso que minha pontualidade aumentou, que percebi só quando minhas despedidas dos lugares foram tornando-se apressadas e confusas.

Entrei no ônibus, achei um lugar vazio, sentei e olhei, comecei a pensar. Agora estou aqui, mais uma vez numa Capital que a única coisa que eu conheço é o nome, é a primeira vez que tomo este ônibus, mas no transcorrer dos tempos vou tomá-lo pela infinitésima vez, o mesmo caminho para o centro. Seguramente vou pensar: eu já passei por aqui centenas de vezes e algumas delas não vi existirem. Por ser a primeira vez, olho o tempo todo para a rua, procurando talvez vida ao redor. Tento imaginar prazeres e tristezas de cada dia dessas pessoas que nunca vi e nunca mais verei, que morrerei sem saber como são suas vozes, seus beijos, suas gargalhadas. Apenas imagino algo que descubro não ser diferente de mim que é de certa e inevitável forma, eu mesmo. Imagino se terão que pagar o castigo dos hipócritas: conversar com hipócritas. No ônibus não há uma face sequer disposta a tornar-se feliz. Nem de passada, nem de futuro-improvável felicidade. O tempo é da mente e do corpo; o tempo e o trabalho, que torna o animal manso, nobre.

E, numa parada de ônibus, eu vi um rosto. Um semblante angelical na face enferrujada de um velho. Sentado num banco da praça, ao seu lado um carrinho de sorvete que empurraria durante todo o dia. Tinha um simpático boné, que dava a impressão de ser uma personalidade alegre. Sua camisa verde, simples, honesta e limpa. Uma calça de aposentado e chinelas de couro. Estava imóvel, salvo sua boca mexendo-se devagar como o tempo, saboreando uma pedrinha de picolé, doce e gelada, como quando queremos aproveitar o último pedaço de um delicioso doce que não tornaremos a comer tão cedo. Mas o que ele saboreava era diverso do sabor do sorvete, ou reflexo desse em suas lembranças. Por um instante indecifrável, seu tempo parou, parou o tráfego, a rua, a cidade, o país, tudo absolutamente sumiu e sua reflexão tomou conta da certeza, e o que lembrava vida era apenas a boca movendo-se, denunciando talvez – mas impossível de saber –, os caminhos por onde passeava sua alma. Olhava apenas para um belo momento de suas memórias. Por um instante, aquele velho terno e sensível desocupou-se de si e do mundo, pois o mundo estava em suas mãos e ali à frente, no chão talvez. Seus olhos olhavam o mundo, olhavam algum belo e terno momento de real amor em sua vida; um momento tão breve quanto o que eu presenciara.

Seu olhar logo se voltou, o sorvete tornou à boca e meu ônibus foi embora.

E lá fui eu, mais uma vez no recomeço, em busca do tudo e do nada.

 

Jota Há _ Brasil

Imagem de fundo_Chaplin _ Retirada da net

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