MATERIALISMO

Jota Há

 

Este trabalho trata-se de um pequeno conto, ou de um conto pequeno como queiram.

Já dizia Afrânio Coutinho que conto é tudo àquilo que o autor diz que é.

Portanto, pura imaginação.

Qualquer aparência com pessoas vivas ou reais é mera coincidência é absurda suposição.

Sei que vocês vão concordar comigo que em nenhuma linha existe alguém assim tão puro.

 

Eu imaginei um hospital público, desnecessário aqui declinar nome, são todos semelhantes. E o tratamento, bem, o tratamento… Nesse hospital encontrava-se internado um paciente terminal, inteligente, mas inteiramente materialista. É… terminal, mas continua inteligente, nosso cérebro tem dessas coisas. Parece possuir uma espécie de masoquismo, conserva o paciente lúcido para que ele assista a sua degradação final, além de outros sofrimentos materiais. O que se segue é um diálogo entre o doente terminal e o médico de plantão quando fazia aquela sua visita matinal aos pacientes. Quem já esteve internado sabe. O médico olha para uma prancheta pendurada ao pé da cama, evitando assim cruzar o olhar com o triste paciente. Mas como toda a regra tem sua exceção, nesse dia o médico fez a célebre pergunta.

– Como está passando hoje, como vai Senhor X?

– Xiii!… doutor…; ando ruim! Até lhe queria pedir que me desse um chazinho-da-meia-noite!…

– Que é isso, homem? A eutanásia é proibida por lei…, e…, além disso, tenho minha ética profissional que a proíbe também.

– Ora essa! Doutor! Que diabo é isso de lei e de ética? Que nada! Tudo isso é léria! A coisa fica só entre nós dois!… E depois que o senhor e eu tivermos morrido, quem é que vai saber dessa violação da lei e da ética? Morreu acabou. A vida me é sumamente aborrecida e cheia de sofrimentos? E mesmo que venha a sarar desta enfermidade, acaso posso escapar da pobreza, da miséria, em que sempre vivi? É verdade que tenho mulher e filhos; mas esta preocupação que me rala, só existe porque respiro! Tanto que tenha os olhos vidrados, adeus preocupações! Adeus sofrimentos! Adeus vida amaldiçoada que me impuseram, pois não pedi para nascer, muito menos para viver!… Eu sei doutor, que o senhor não diz, aí sim por questão de ética. Mas imagino que pensa como eu que: Deus é pura criação da estupidez humana; segundo, que nada existe, além da inexaurível matéria; e terceiro, que a alma é função do organismo.

– Eu confesso não possuir argumentos razoáveis para convencê-lo, porém, quanto a matá-lo, não está em mim o fazer… Minha missão é curar, que não tirar a vida.

– Mas o senhor vai tirar-me a vida, retrucou o Senhor X!

– Como? Se me recuso a isso?

– É que vou suicidar-me…; estou firme neste propósito!

– Bem… mas… então, isso é por sua conta, não me cabendo nenhuma culpa!

– Eu, doutor, se tivesse saúde, venderia caro minha vida, porque iria ser guerrilheiro, um sabotador, faria ver a todos esses ricaços que vivem em ócio, o quanto lhes custa escorchar os desgraçados como eu. Poria bombas-relógios em suas casas e indústrias, fazendo voar tudo pelos ares… Mas como não valho nada, tenho de destruir-me sem proveito nenhum para ninguém, exceto o exemplo que deixo para ser imitado pelos pobres e doentes.

E interceptando o doutor que estava vai não vai para falar, continuou o Senhor X:

– Schopenhauer, contrapondo-se a Leibniz, demonstrou ser o nosso "o pior dos mundos possíveis". Todavia, como escreveu em sua obra o grande Ernesto Haeckel, As maravilhas da Vida, "nem Schopenhauer nem o mais notável dos pessimistas modernos, Eduardo von Hartmann, tiraram as conseqüências práticas desta doutrina, as quais conseqüências seriam negar a ‘vontade de viver´ e pôr um termo aos sofrimentos pelo suicídio". E continua Háeckel: "Se, pois, o infeliz nascido do ovo fecundado não encontra no decurso da existência a felicidade a que podia aspirar; se a vida, ao contrário, só lhe traz miséria, doença e sofrimento são absolutamente incontestáveis e fora de dúvida que ele tem direito a pôr-lhe fim pela morte voluntária, pelo suicídio". Donde vem que todo homem que possui verdadeiramente o amor do próximo deve prestar a quem sofre sem esperança, a possibilidade de se libertar pelo suicídio. Matamos os animais domésticos, nossos amigos, quando sofrem de mal incurável. "Do mesmo modo – diz Haeckel – temos o direito, e até, se quiserem, o dever de pôr termos aos sofrimentos de nossos semelhantes atingidos de doenças cruéis e sem esperança de cura, quando eles nos pedem que os libertemos do mal" Haeckel é pela pura e simples eliminação espartana dos imprestáveis, quando acrescenta: "quantos sofrimentos e despesas podiam ser evitados se nos decidíssemos a aliviar do fardo da vida os incuráveis". Como vê, doutor eu assinalei com doutrina autorizada as conseqüências inevitáveis que se inferem na sua filosofia. Logo, se o senhor quiser ser homem bom, humanitário, compreensivo, sobretudo lógico, tire-me à vida!

– Mas, homem de Deus! O suicídio é uma covardia!… E sua mulher? E seus filhos?!…

Esta descabida e inesperada interpelação do médico fez o Senhor X arregalar os olhos, desconfiado, cobrando ânimo da surpresa, retrucou:

– O senhor me fala de Deus? Como se houvesse Deus! Ora, se tudo fica pó e nada, este é o fim extremo e o começo de todas as coisas! Se houver, então, Deus, eu tenho de supô-lo um louco que brinca de fazer e desfazer seres e mundos!… Comigo Deus não brinca, porque, em lhe descobrindo os planos de aniquilar-me, eu antecipo-os, e o desaponto. Se todos fossem como eu, Deus deixaria de zombar dos homens, com fazê-los sonhar estrelas e padecer infernos!… Se, como o estou demonstrando, posso burlar o plano divino, como me fazer cinza e nada, antes que ele o decrete, não posso ser homem de Deus, como o senhor me chamou, mais por retórica do que por fé.

O médico, bem que tinha outros afazeres, porém, nunca tivera pela frente homem tão interessante, culto e original. Tudo o que o Senhor X lhe falava, era inédito para ele, e por isto ficou atento a escutar. E finda uma pausa, continuou o doente:

– Além disso, doutor, minha mulher e meus filhos só existem para mim, porque estou vivo; morto tudo morre comigo!… E que me chamem de covarde, pouco me importa isso! O senhor já viu algum defunto protestar contra injúrias? Não queira convencer-me, agora, que devo viver, sendo pobre e doente, é cometer um absurdo!

E fixando, duramente, o médico, com ar de repreensão, acrescentou o Senhor X:

– O senhor, doutor, precisa ser mais coerente! Se a morte é o fim, alcançá-lo depressa é melhor do que viver sofrendo! Por isso lhe pedi me matasse, sem nem pensar que o senhor me viria com essa bobagem de ética e de lei! A conseqüência natural, espontânea, é de que os médicos não precisavam existir, porque eles prolongam a vida, e viver é um absurdo, visto como até os mais felizes sofrem. Os ricos compram o alívio para as dores físicas; não, porém, para as morais… O senhor já não tem lido que os artistas famosos, escritores e multimilionários célebres costumam suicidar-se? Pois se até estes fazem isso, como o não fazerem os que, como eu, que por serem pobres, sofrem? Se todo homem nasce chorando; se a maioria vive suando, como burros, acorrentados às carroças dos poderosos; se todos morrem gemendo, não sei para que possa servir a vida! Só mesmo para quem é rico e poderoso se justifica, e para eles é até de utilidade que eu tenha religião, pois enquanto vivo de esperanças e busco o céu, eles tomam conta da Terra… No fim, todos morrem e dão em nada… Ora, se todos os desgraçados, que lhe dão o sustento, se suicidassem, o senhor já imaginou o seu apuro, e também o dos ricos? Todos teriam de trabalhar a terra, de enxadas nas mãos, sendo-lhes, também, melhor morrerem!… E que beleza, para os animais, se todos os homens morressem! Ficaria a Terra inteirinha só para eles… que ignoram que a vida é um absurdo, e só por isso vivem e querem viver! Eis, doutor, a descoberto, o fundamento econômico sobre que se assenta a sua ética profissional, que o proíbe de praticar a eutanásia! Fazer isto seria cometer a loucura de ceifar a lavoura verde ainda em flor!… Prolongar a agonia do rico e condenado à morte, com balão de oxigênio e óleo canforado, é um jeito certo, seguro, de fazer a roça produzir! Fosse o doente pobre, e eu queria ver se o deixariam ou não morrer em paz!

O médico estava boquiaberto. – Que sujeito autêntico, inteligente e original – pensava ele, de si para consigo. Seria uma perda irremediável deixá-lo morrer. E o Senhor X, coordenando novas idéias, continuou:

– Resumindo e enfeixando tudo numa única frase, temos: o fim supremo da sabedoria é o nada! Tudo nasce, cresce, desenvolve-se, evoluindo até o homem; e chegando este à plenitude do saber, descobre a absurdidade da vida, e suicida-se. É assim que, pelo eterno retorno, as civilizações saem da barbárie, e para ela voltam de novos. Saem dela, vencendo, a custo, a ignorância que as religiões tentam manter, e retornam a ela pela libertação intelectual, pela cultura, ceticismo e suicídio. Nietzsche tinha razão; o que existe mesmo é a eterna recorrência, o eterno retorno. Chegando a vida ao pináculo da razão, completa-se a si mesma, e, descobrindo quão absurda é, suicida-se. Mas os que, hão descoberto esta verdade profunda, não devem suicidar-se, pura e simplesmente, dando suas vidas de barato. Pelo contrário, devem como ensinou Epicuro, gozar a vida, dar largas à besta, fazer o diabo. Quando toda a sociedade se converter ao materialismo, e tiver fé verdadeira que morreu acabou então toda ela se subverterá, e uma guerra de extermínio porá termo a tudo, para tudo recomeçar de novo. É assim, doutor, que as civilizações, por mais de uma vez, têm caído na barbárie, como o notaram Spengler e Lessing, para de lá ressurgirem de novo, como Sísifo a rolar sua pedra morro acima, para vê-la despenhar-se no abismo, outra vez! É preciso derribar o velho caduco, para erigir em seu lugar o novo, o qual, por sua vez, será desalojado por outra ordem, não melhor, mas diferente. Aqui estão, doutor, as conseqüências neitzscheanas que prega não haver Deus, nem sobrevivência da alma, nem prêmio e castigos póstumos!…

– Quem, pois, está em cima, continuou o Senhor X, come, e quem está bem embaixo passa fome; e isso é em todas as nações do mundo. Por isso Cristo disse: "os pobres tê-lo-eis sempre convosco"… ao que acrescento: e os poderosos, também, sobre vós, para vos escorchar! Quem tem razão é o arguto Trasímaco que dizia a Sócrates: "Minha doutrina é que a justiça é simplesmente o interesse do mais forte". E prossegue: "E não é fato que em toda a cidade a força superior reside nos governantes? Ainda mais. Cada governo tem leis adequadas a seus interesses: democráticas, nas democracias; despóticas nas aristocracias, e assim por diante. Ora, quando assim procedem, não declaram os governos que o que é do seu interesse próprio é justo para com os súditos? E não punem a quem dessas normas se desvia como réu de ilegalidade e injustiça? Portanto, meu caro (Sócrates), o que digo é que, em todas as cidades a mesma coisa, que é o interesse do governo estabelecido, é justa. E a força superior, ao que eu presumo se encontra ao lado do governo. Donde se conclui, por correto raciocínio que a mesma coisa, isto é, o interesse do mais forte, é por toda parte justo"

(Platão em A República).

E assim, doutor, o forte se mantém no poder enquanto pode, e, em caindo, exclama:

"Acta est fabula"!…

E com percuciente olhar fitando o médico, argumentou o Senhor X:

– A dor é um fato universal e generalizado, não só no nível humano, mas em todos os outros níveis de vida. Schopenhauer estava certo: só a dor é constante, e a felicidade, transitória. Por isso o filosofo acha que o sofrimento e a dor são positivos, e a felicidade, negativa. Textualmente, aqui, do meu caderno de notas: "Se a nossa existência não tem por fim imediato à dor, pode dizer-se que não tem razão alguma de ser no mundo. Porque é absurdo admitir que a dor sem fim que nasce da miséria inerente à vida e enche o mundo, seja apenas um puro acidente, e não o próprio fim. Cada desgraça particular parece, é certa, uma exceção, mas a desgraça geral é a regra". (Arthur Schopenhauer, Dores do Mundo). "O bem-estar e a felicidade são, portanto negativos, só a dor é positiva" (idem). A existência, logo, "possui o caráter de uma grande mistificação, para não dizer de um logro…" (Idem, idem). Por esta causa, "o mundo é o inferno, e os homens dividem-se em almas atormentadas e em diabos atormentadores" (Idem, idem, idem). Deste modo "todo o homem acabará por chegar à conclusão de que este mundo dos homens é o reino do acaso e do erro, que o dominam e o governam a seu modo sem piedade alguma, auxiliada pela loucura e pela maldade, que não cessam de brandir o chicote" E conclui o próprio Schopenhauer: "Se um Deus fez este mundo, eu não gostaria de ser esse Deus: a miséria do mundo esfacelar-me-ia o coração" E remata: "Imaginando-se um demônio criador, ter-se-ia, portanto o direito de lhe gritar mostrando-lhe a sua obra:" Como ousaste interromper o repouso sagrado do nada, para fazer surgir tal massa de desgraças e de angústias?"Assim também teria falado Adão na inspiração de Milton (Paraíso Perdido, Canto X)":

"Deus criador, pedi-te por ventura

Que do meu barro me fizesses homem?

Pedi-te que das trevas me tirasses,

Ou me pusesses em jardim tão belo?

Como não ocorreu minha vontade

De modo algum para a existência minha,

De mais razão, de mais justiça fora

Que meu antigo pó me convertesse…".

E continuou o enfermo, após pausa meditativa:

– O corolário final destas verdades não pode ser outro que não o suicídio. Contudo, não devo matar-me pelas minhas próprias mãos, mas, pelo contrário, devo fazer estragos com elas, tornando-me, por minha vez, num "diabo atormentador", forçando, deste modo, a que outros demônios me matem… Por este motivo, o suicídio fino, sábio, heróico é aquele do "gangster", do sabotador e do guerrilheiro que se dispõem a viver em estado de guerra, como o pregara Zaratustra. Este, doutor, o suicídio de que lhe falo, nobre, alto e complexo. Sendo a dor e as desgraças positivas. Sábio é o homem que as busca no seu grau máximo que é aquele que culmina com a morte. Tolo é aquele que busca a felicidade e o gozo, pois são negativos, e não passam de engodos com que a vida ilude o homem para que, em vivendo, seja atormentado de contínuo. O senhor, em se recusando a me matar, está procedendo como um "diabo atormentador", pois sabe que com a morte eu seria feliz…, visto como na morte não há dor.

E passando as mãos pelos cabelos grisalhos e crescidos, concluiu o Senhor X:

– Contudo, não podendo eu participar deste nobre suicídio do "gangster" e do guerrilheiro indômito, terei de praticar o suicídio despretensioso e simples dos inválidos. Tendo eu, pois, descoberta esta suma verdade neste leito de hospital, completo agora o meu ciclo, desaparecendo para sempre!… Eu, doutor, num passado não muito distante, costumava ter minhas reações místicas, cuidando que os materialistas não passavam de uns lunáticos, e que a imortalidade e céu deveriam de fato existir, para se corrigirem, lá, os males e erros deste mundo. É que eu tinha em mente o padre Vieira que começa assim um sermão: "O Batista em prisões! Logo há de haver outro juízo e outro mundo. Provo a conseqüência. Porque, se há Deus, é justo; há de dar prêmio a bons, e castigo a maus: no juízo deste mundo vemos os maus, como Herodes, levantados, os bons, como o Batista, oprimidos: segue-se logo que há de haver outro juízo e outro mundo: outro juízo, em que se emendem estas desigualdades e injustiças; etc." (Padre Vieira, Sermões, 11). E continua o padre mais adiante: "Um dos principais fundamentos de nossa fé é a imortalidade das almas, e a nossa justiça é a mais evidente prova da nossa imortalidade. Se os homens não fossem injustos, pudera-se duvidar se eram imortais; mas permite Deus que haja injustiças no mundo para que a inocência tenha coroa e a imortalidade prova. Quem pode duvidar da imortalidade da outra vida, se vê nesta maldade de Herodes levantada ao trono e a inocência do Batista posta em prisões?".

E fechando, o Senhor X, seu caderno de anotações, prosseguiu, voltando-se para o médico:

– Como lhe dizia, estava com estes pensamentos de Vieira martelando em meu cérebro, quando, ocorreu-me: se o padre estiver certo, deve haver também um céu para os cavalos, visto que estes brutos sofrem, neste mundo, a tremenda injustiça de serem castrados, de trabalharem sob chicote, por nada, a vida toda, e de irem para o corte, na velhice, quando imprestáveis. E como não me cabe na cabeça possa haver um céu de cavalos, outro de burros, outro de bois, etc., desisti da idéia de que, como quer o padre, possa haver algum céu de homens, só porque João Batista, sendo justo e bom, fosse preso e morto, e Herodes, injusto e mau, permanecesse no trono. Eu também poderia usar os mesmos argumentos do padre dizendo: se existe Deus, há de ser justo; e se o é, há de premiar os cavalos, os burros e os bois, metendo-os nos céus, e arremessando os carreiros e os carroceiros todos nos infernos!… Kant caiu também nesta tolice, fazendo sorrir, complacentemente, a Schopenhauer. Não conseguindo chegar Kant a Deus na sua "Crítica da Razão Pura", a este chega pelos caminhos do padre Vieira em sua "Crítica da Razão Prática", ou seja, deduz a imortalidade da alma da necessidade de recompensa.

– Os que nascem aleijados e deformados nesta vida, prosseguiu o Senhor X, dizem, os espíritas, que é por causa dos pecados de outras vidas. E os animais monstrengos que morrem no mais absoluto desamparo, e só por isso não perambulam, por aí, como os deformados humanos, que pecados pagam? Por causa destas considerações, abrandou-se-me o furor místico e passei a ser o verdadeiro materialista que o doutor forçadamente está conhecendo. Volto a afirmar que: morreu acabou! O homem é o que criou Deus imaginando-o, segundo sua imagem e semelhança! A alma e resultante das funções orgânicas, e cessadas as funções, cessa a alma. Tanto faz ser um São Francisco de Assis ou um Lampeão nesta vida, que o resultado é invariavelmente o mesmo – o pó, o nada. A moral que se infere destas premissas é a de Trasímaco, de Machiavelli e de Nietzsche, da força e da astúcia. Astúcia é o mesmo que engano, mentira, ludíbrio, falsidade. O homem vive para a dor e para a morte; mas enquanto vive, deve fazê-lo a custa dos outro, se possível! Trabalhar é para os tolos… que esta é a lógica do leão, do lobo e da águia que espreitam suas presas para caírem sobre elas. Eu tenho razão, doutor: morreu acabou! E eu é que não vou ficar aqui, perdendo o meu tempo em viver, quando me posso descansar, e já, no pó, no nada, no não-ser!…

E dando ao expressivo e versátil rosto um ar de suplicante, continuou o Senhor X:

– Doutor! Ajude-me a morrer!… Só o senhor pode fazê-lo sem dores para mim… A vida é a maldição que recebi um dia dum Criador cruel que se compraz na agonia de suas criaturas! Conquanto esteja eu na metade da vida, já me sinto um Ashverus curvado ao peso duma eternidade. Schopenhauer estava certo ao perguntar: "Por quanto tempo ainda seremos conservados neste muito-barulho-para-nada, nesta aflição contínua que nos leva à morte?" Perguntando o rei Midas ao deus Sileno qual o melhor destino de um homem, teve isto por resposta: "Miserável raça de um dia, filhos do acidente e da aflição, por que me forçais a dizer o que bom fora não fosse dito? O melhor dos fados é inacessível – não nascer, não ser. Depois, o melhor fado é morrer cedo!" Até Salomão que vivia em orgias e banquetes contínuos com mil mulheres, acabou concluindo ser melhor o dia da morte que o do nascimento (Ecl. 7, 1). Se até ele sendo inteligente, e rei, e rico, e gozador da vida achou isso, por que devo eu viver?

E quedando-se a olhar uma mancha azul de remédio na colcha branca do seu leito, filosofou o Senhor X:

– A vida é uma tragédia eterna e infinita em que um ser esposteja e devora o outro para gozo de Deus, porque, se ele fosse pai, e não, carrasco, ter-me-ia feito a mim insensível para não sofrer! Uma vez que me pôs por sina atroz o ser comido dos homens e dos vermes, que o fosse, então, sem terrores, martírios e fadigas. Ainda que inocente (e se culpado, onde a culpa?), Deus me condenou às galés da vida, quando me podia ter deixado continuar na imobilidade do não-ser!… Deus! Ó Arquétipo eterno do sadismo e da maldade! "Como ousaste interromper o repouso sagrado do nada, para fazer surgir tal massa de desgraças e de angústias?" (Schopenhauer). Uma vez, porém, que a Suma Crueldade me soprou o movimento, a razão, o melhor dos fados é chegar agora ao fim! Um pouco de clorofórmio, então, na minha veia… Ali está a seringa… e a agulha de injeção!… Complete essa caridade, sendo bom, ao menos uma vez! Eu vivo…; e a vida me rala o coração, e punge, e gela o peito, pior do que sentir o ferro de Longuinhos abrindo o lado de Jesus!… O universo é o inferno único onde à vida é torturada até a extinção do ser que a porta. Por este motivo, do vegetal ao homem, todo o ser vive à custa de outro ser que é atormentado e morto, donde vem que a vida é toda feita de martírios. Disto se conclui: ou não há Deus, como eu afirmo, ou ele deve chamar-se: o Sádico…

– Que Deus é sádico, doutor, todas as religiões o entenderam, claramente, desde o início, e por esta razão, todas, sempre, lhe fizeram sacrifícios. A antropologia, alumiando o interior das cavernas pré-históricas, pôde constatar a extensão de todo o horror: o sacrifício humano foi o expediente usado para aplacar a ira do deus, sempre sedento de sangue, e desejoso de torturar suas vítimas. Os homens mais inteligentes de todos os tempos e de todos os lugares, ainda que isolados entre si, chegaram à mesma conclusão: observando a natureza, descobriram a constante temática que domina todos os movimentos dessa sinfonia-mor. Deus na natureza compõe variando quatro temas básicos: de uma parte, em tonalidade maior, astúcia e força; da outra, em tonalidade menor, martírio e morte! Logo, arrancar pela força, uma criancinha dos braços maternos para sacrificá-la, deve ser, de fato, estupendo para esse deus sempre famélico, insaciável, formidoloso!

"Moloch adiante vem, monarca fero,

Tinto de humanas vítimas no sangue,

Nunca farto de lágrimas maternas,

Posto que – dos tambores, dos adufes

C’o turbulento estrondo, – não se ouvissem

Os gritos das misérrimas crianças

Arrojadas (oh! dor!) às labaredas

Em honra do seu ídolo iracundo!"

(Milton, Paraíso Perdido, Canto I).

– Que gozo inaudito prossegue o enfermo, não sentirá o Todo-Poderoso, ao ver a mãe arrancar os próprios cabelos. Enlouquecida pela dor. E ver o pai rasgar as vestes, e escabujar no chão, tentando achar no peito o próprio coração para despedaçá-lo! Ó nojo! Ó maldição!…

E mantendo ainda no semblante a expressão de asco, prosseguiu o Senhor X:

– A história da humanidade, desde que o primata superior se levantou nas patas posteriores, está cheia de flagelações e de martírios, e a própria Cruz de Cristo foi interpretada como um holocausto exigido pela Justiça Divina que precisava vingar-se da desobediência de Adão. Primeiro faz Deus a Adão ignorante, ingênuo, sugestionável, falível; como se isto não bastasse, mete no paraíso terrenal a serpente diabólica para tentá-lo. Caído Adão vem-lhe a sentença baseada na justiça do Leão! E se Deus não é Leão, é Águia pela astúcia e pela rapina! Ou melhor: Deus é Leão alado com cabeça maquinadora de homem! Aqui está a imagem do Deus verdadeiro – a Esfinge – a dizer a Édipo: "Homem efêmero, viageiro obscuro, sombra que passa, pó que anda e só por isso se cuida ser!… Eis-me sobre ti, e por isso desespera!"

– Por esta causa, doutor, a única piedade que conheço é a morte! A idéia da sobrevivência da alma far-me-ia pensar na eternidade da vida, e, por conseguinte, na da dor, bem conforme com o sadismo divino. As próprias religiões nascem do anseio de sobreviver, e é por isto que elas estendem a conservação do indivíduo para além da morte. Com este artifício solenemente insuflado por Deus, sua possibilidade de gozar a tortura do criado se amplia, porque, no ponto em que a razão enfraquece o instinto de conservação e o anula, a asnidade religiosa o reforça, fazendo com que os sofrimentos aumentem, estoicamente, não só os horrores desta vida, senão ainda os terrores de se perderem na outra, em que cuidam que a dor se recrudesce como que elevada de potência. Assim se sofre, não só as dores reais desta vida, como também, por antecipação, as imaginárias da outra.Tal o pesado tributo que pagam os religiosos por ter fé e crer. Todavia, nós, homens de ciência, como o senhor e eu, estamos livres desse ônus opressivo, e sabemos que, contra o tenacíssimo instinto de sobreviver, está à razão que pode vencê-lo de vez. Temos a consciência de que, sendo o instinto de conservação o limite, podemos transpô-lo para sempre. Daí o ter-lhe dito eu que o fim supremo da sabedoria é o nada! Porque a sabedoria se ocupa de vencer os instintos todos, e o mais tenaz deles, é o de conservação. Vencer a este é suicidar-se, e só a sabedoria plena pode fazê-lo, em razão do que eu digo que além do extremo limite do saber está o suicídio, e, com este, a doce entrada no nirvana do não-ser!

– Mas chego a estremecer, doutor, quando considero que as religiões podem estar certas, e que a morte não é o fim desta vida; porque, se Deus pode gozar, eternamente, a tortura do criado, que razão teria ele para permitir que a morte fosse o fim? Quando ele pode continuar torturando o espírito no além túmulo? Como não sofrer, se eu continuar vivendo após a morte? Se houver, então, tal outra vida, será que tenho de prosseguir no meu suicídio, aniquilando-me, de contínuo, até alcançar o cobiçado nirvana do não-ser? Teria enxergado isto, Buda, para recomendar a morte por partes, pelo que os desejos deviam ser aniquilados um a um, até que, finalmente, acabasse o mesmo desejo de viver? Será que após a morte física, hei de continuar morrendo pelos tempos a fora, até que, no fim de tantas mortes relativas e parciais, encontre a morte eterna? A ser verdade o que apregoam as religiões (e tremo de o pensar!), a mim me cumpre continuar morrendo, e, de morte em morte, chegar, um dia, ao fim, ao eterno repouso do não-ser! De nada me valeria alguém me provar que há outra vida além desta, sem demonstrar-me à causa da dor…, visto que até Cristo, se é que vive e ama, há de estar sofrendo!… Depois, porém, tornando a mim do susto que tais tormentosos pensamentos me causam, raciocino deste modo: se tudo veio do caos e do nada formal, a este começo terá de recair a criatura rebelde que se volta contra si mesma, praticando o auto-aniquilamento. Mas falo só desta vida, que não de outras hipotéticas e impossíveis. A alma é função do organismo; não pode ser de outro modo; morto o corpo, estará morta a alma. Meu sobressalto é pesadelo vão, é sonho de louco, contra o qual a razão minha se rebela, recusando-se a o aceitar. A morte física tem que ser o fim.

E depois de suspirar numa pausa, continuou o Senhor X:

– O senhor não declara, mas eu sei que é assim que pensa, que os santos e os demônios só podem caber nos bestuntos dos estúpidos. Portanto, somente toleirões crêem na existência deles. Ora, o senhor e eu não cremos em santos e demônios; logo, não somos asneirões. E se numa parte colocarmos os religiosos, os estúpidos crendeiros, com suas asneiras, na parte oposta estaremos nós, os superinteligentes, com nossa sabedoria. A pedra-de-toque com a qual se há de avaliar os homens, é saber se crêem ou não, em santos e demônios. Afirmando que crêem, são estúpidos; se não crêem, sábios. O senhor e eu, por conseguinte, somos Sábios: quem o suspeitaria? E possuímos a sua ciência, porque estamos no limite extremo do saber, além do qual é o nada. A quem, como nós, chegou até aqui, só falta o salto final no não-ser. Eu o faço agora, e o senhor, quando as coisas lhe correrem mal. Por isso, doutor, eu vou receitar-lhe isto, embora seja o senhor o médico, e eu, o doente; eis a receita: não se esqueça nunca de ter sempre à mão uma dose mortal de algum veneno fulminatório, porque nenhuma coisa pode perturbar a placidez e a serenidade bovina daquele que sempre traz consigo uma ampola de ácido cianídrico, para refugiar-se na morte, a qualquer momento, quando alguma fatalidade, como a tortura ou o câncer, o atingir. Então, é só mastigar a ampola…, e cair no nada "per omnia século seculorum"!… Aí, então, se é eternamente feliz, porque na morte não há dor!…

– Buda, aquele grande comedor de arroz, continuou o Senhor X afadigado criou uma doutrina complicada para entrar no nirvana do não-ser, pela anulação de todos os desejos, através das reencarnações. Ora bem. Todos os desejos nascem do desejo de viver; vencer, portanto, a este desejo-mor, é cortar a hidra de todas as cabeças de um só golpe. Quem é que, podendo erradicar de vez uma árvore, vão perder tempo em podar-lhe os galhos? Vem cá, Buda: tanto trabalho e canseira, para nada?! Eis, aqui está, quem chega a nada, sem canseiras e trabalhos nenhuns!…

– Como vê, doutor, sou muito mais budista do que o próprio Buda, e mais radical do que Schopenhauer, porque tenho alcançado isto: a vida é refeita de dores e tragédias, e só a morte não dói!…

Que prodigioso pensador é esse Senhor X – pensava o médico. É preciso salva-lo a todo custo, visto que sua vida é sumamente preciosa! E, rápido, deu com uma solução que pôs logo por obra, ao atalhar:

– Espere, Senhor X: você vai dormir um sono muito calmo, tranquilo, sereno, balsamificante; e quando acordar estará outro, mudado, otimista, desejoso de viver!

A estas palavras do médico, o Senhor X se pôs em guarda; e fazendo o gesto da banana, retrucou, de pronto:

– Aqui!… que o senhor me faz dormir! Conheço de sobra essa manha! O senhor me faz dormir com palavras suaves, repetidas e monótonas, e depois me pergunta, estando eu dormindo, se estou escutando a sua voz. E eu respondo que sim, com um aceno de cabeça. Daí, o senhor vai, e me planta uma porção de sugestões, dentre as quais, que eu gosto da vida, que sou um biófilo, que quero sarar, viver, que respirar… é a coisa mais gostosa deste mundo… Nada disso comigo! Não durmo! Suas arengas ser-me-iam inúteis, visto que me barriquei contra elas! Não sou homem de sugestão, mas de persuasão; sou homem de racionalidade, não, de fé. E a hipnose é sugestão, e a sugestão é fé, e a fé é religião, donde vem que as três são afins e têm um fundamento comum, que é o princípio da autoridade, opondo-se, frontalmente, à persuasão ou ciência, que é a aceitação duma ideia mediante o exame racional dos argumentos e das provas. Polarmente, opondo-se a isto, a sugestão é a aceitação duma ideia sem exame algum, pura e simplesmente, baseada na autoridade de quem fala. Segue-se, logo, que a hipnose é pura fé, em nada se diferindo das demais em que se alicerçam as religiões. Não há hipnose científica, e sim, apenas a explicação científica para a hipnose, porque esta é, em seu próprio fundamento, mística, primitiva, crédula, infantil, ingénua.

– Então, doutor, por causa desta verdade sem contestação possível, essa sua "conversa" me insulta, visto tomar-me, o senhor, por estúpido crendeiro que pode ser conduzido, de cambulhada, por sugestão. Não foi isso, precisamente, que dissemos dos religiosos que crêem… em santos e demónios, só porque alguma suposta autoridade declarou que eles existem? E como é que o senhor quer agora me submeter à sua autoridade, fazendo-me aceitar tudo de fé, sem discutir, e sem as provas e demonstrações lógicas? Por que devo crer no senhor, e não, em Cristo? Acaso não dissemos serem papalvos todos os que crêem em Cristo? E por que não serão otários os que crêem no senhor, na sua léria hipnotizante, nessa sua conversa mole, chocha, insípida, monótona, vazia, que faz aos crendeiros dormir? Eu me ri de Cristo, e, pela mesma razão, me rio agora do senhor, visto que ambos pretendem guiar-me em rebanho, e de antolhos, ao som de uma flauta qualquer! Aqui!… que eu durmo! O senhor vai matar-me: se o não fizer directamente, como lhe peço, fá-lo-á pelas minhas próprias mãos, não tenha dúvidas sobre isso!…

Vendo o médico ser impossível dissuadir o Senhor X da ideia do suicídio, abandonou o quarto para providenciar outros meios de evitar que tal se consumasse. Mas o Senhor X, arguto, prevendo isso, atirou-se pela janela do edifício, vindo a quebrar o pescoço contra o calçamento…

Jota Há

 

"A atitude mais corajosa diante da morte, e a mais natural, está em esperá-la, não somente sem espanto como também sem preocupação; está em continuar a viver, até que ela se apodere de nós, sem nada mudarmos em nossa maneira de viver".

Michel de Montaigne

 

Imagem de fundo Ju_Retirada da net

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