– Eu, doutor, se tivesse saúde, venderia caro
minha vida, porque iria ser guerrilheiro, um sabotador, faria ver a
todos esses ricaços que vivem em ócio, o quanto lhes custa escorchar
os desgraçados como eu. Poria bombas-relógios em suas casas e
indústrias, fazendo voar tudo pelos ares… Mas como não valho nada,
tenho de destruir-me sem proveito nenhum para ninguém, exceto o
exemplo que deixo para ser imitado pelos pobres e doentes.
E interceptando o doutor que estava vai não vai
para falar, continuou o Senhor X:
– Schopenhauer, contrapondo-se a Leibniz,
demonstrou ser o nosso "o pior dos mundos possíveis". Todavia, como
escreveu em sua obra o grande Ernesto Haeckel, As maravilhas da
Vida, "nem Schopenhauer nem o mais notável dos pessimistas modernos,
Eduardo von Hartmann, tiraram as conseqüências práticas desta
doutrina, as quais conseqüências seriam negar a ‘vontade de viver´ e
pôr um termo aos sofrimentos pelo suicídio". E continua Háeckel:
"Se, pois, o infeliz nascido do ovo fecundado não encontra no
decurso da existência a felicidade a que podia aspirar; se a vida,
ao contrário, só lhe traz miséria, doença e sofrimento são
absolutamente incontestáveis e fora de dúvida que ele tem direito a
pôr-lhe fim pela morte voluntária, pelo suicídio". Donde vem que
todo homem que possui verdadeiramente o amor do próximo deve prestar
a quem sofre sem esperança, a possibilidade de se libertar pelo
suicídio. Matamos os animais domésticos, nossos amigos, quando
sofrem de mal incurável. "Do mesmo modo – diz Haeckel – temos o
direito, e até, se quiserem, o dever de pôr termos aos sofrimentos
de nossos semelhantes atingidos de doenças cruéis e sem esperança de
cura, quando eles nos pedem que os libertemos do mal" Haeckel é pela
pura e simples eliminação espartana dos imprestáveis, quando
acrescenta: "quantos sofrimentos e despesas podiam ser evitados se
nos decidíssemos a aliviar do fardo da vida os incuráveis". Como vê,
doutor eu assinalei com doutrina autorizada as conseqüências
inevitáveis que se inferem na sua filosofia. Logo, se o senhor
quiser ser homem bom, humanitário, compreensivo, sobretudo lógico,
tire-me à vida!
– Mas, homem de Deus! O suicídio é uma covardia!…
E sua mulher? E seus filhos?!…
Esta descabida e inesperada interpelação do médico
fez o Senhor X arregalar os olhos, desconfiado, cobrando ânimo da
surpresa, retrucou:
– O senhor me fala de Deus? Como se houvesse Deus!
Ora, se tudo fica pó e nada, este é o fim extremo e o começo de
todas as coisas! Se houver, então, Deus, eu tenho de supô-lo um
louco que brinca de fazer e desfazer seres e mundos!… Comigo Deus
não brinca, porque, em lhe descobrindo os planos de aniquilar-me, eu
antecipo-os, e o desaponto. Se todos fossem como eu, Deus deixaria
de zombar dos homens, com fazê-los sonhar estrelas e padecer
infernos!… Se, como o estou demonstrando, posso burlar o plano
divino, como me fazer cinza e nada, antes que ele o decrete, não
posso ser homem de Deus, como o senhor me chamou, mais por retórica
do que por fé.
O médico, bem que tinha outros afazeres, porém,
nunca tivera pela frente homem tão interessante, culto e original.
Tudo o que o Senhor X lhe falava, era inédito para ele, e por isto
ficou atento a escutar. E finda uma pausa, continuou o doente:
– Além disso, doutor, minha mulher e meus filhos
só existem para mim, porque estou vivo; morto tudo morre comigo!… E
que me chamem de covarde, pouco me importa isso! O senhor já viu
algum defunto protestar contra injúrias? Não queira convencer-me,
agora, que devo viver, sendo pobre e doente, é cometer um absurdo!
E fixando, duramente, o médico, com ar de
repreensão, acrescentou o Senhor X:
– O senhor, doutor, precisa ser mais coerente! Se
a morte é o fim, alcançá-lo depressa é melhor do que viver sofrendo!
Por isso lhe pedi me matasse, sem nem pensar que o senhor me viria
com essa bobagem de ética e de lei! A conseqüência natural,
espontânea, é de que os médicos não precisavam existir, porque eles
prolongam a vida, e viver é um absurdo, visto como até os mais
felizes sofrem. Os ricos compram o alívio para as dores físicas;
não, porém, para as morais… O senhor já não tem lido que os artistas
famosos, escritores e multimilionários célebres costumam
suicidar-se? Pois se até estes fazem isso, como o não fazerem os
que, como eu, que por serem pobres, sofrem? Se todo homem nasce
chorando; se a maioria vive suando, como burros, acorrentados às
carroças dos poderosos; se todos morrem gemendo, não sei para que
possa servir a vida! Só mesmo para quem é rico e poderoso se
justifica, e para eles é até de utilidade que eu tenha religião,
pois enquanto vivo de esperanças e busco o céu, eles tomam conta da
Terra… No fim, todos morrem e dão em nada… Ora, se todos os
desgraçados, que lhe dão o sustento, se suicidassem, o senhor já
imaginou o seu apuro, e também o dos ricos? Todos teriam de
trabalhar a terra, de enxadas nas mãos, sendo-lhes, também, melhor
morrerem!… E que beleza, para os animais, se todos os homens
morressem! Ficaria a Terra inteirinha só para eles… que ignoram que
a vida é um absurdo, e só por isso vivem e querem viver! Eis,
doutor, a descoberto, o fundamento econômico sobre que se assenta a
sua ética profissional, que o proíbe de praticar a eutanásia! Fazer
isto seria cometer a loucura de ceifar a lavoura verde ainda em
flor!… Prolongar a agonia do rico e condenado à morte, com balão de
oxigênio e óleo canforado, é um jeito certo, seguro, de fazer a roça
produzir! Fosse o doente pobre, e eu queria ver se o deixariam ou
não morrer em paz!
O médico estava boquiaberto. – Que sujeito
autêntico, inteligente e original – pensava ele, de si para consigo.
Seria uma perda irremediável deixá-lo morrer. E o Senhor X,
coordenando novas idéias, continuou:
– Resumindo e enfeixando tudo numa única frase,
temos: o fim supremo da sabedoria é o nada! Tudo nasce, cresce,
desenvolve-se, evoluindo até o homem; e chegando este à plenitude do
saber, descobre a absurdidade da vida, e suicida-se. É assim que,
pelo eterno retorno, as civilizações saem da barbárie, e para ela
voltam de novos. Saem dela, vencendo, a custo, a ignorância que as
religiões tentam manter, e retornam a ela pela libertação
intelectual, pela cultura, ceticismo e suicídio. Nietzsche tinha
razão; o que existe mesmo é a eterna recorrência, o eterno retorno.
Chegando a vida ao pináculo da razão, completa-se a si mesma, e,
descobrindo quão absurda é, suicida-se. Mas os que, hão descoberto
esta verdade profunda, não devem suicidar-se, pura e simplesmente,
dando suas vidas de barato. Pelo contrário, devem como ensinou
Epicuro, gozar a vida, dar largas à besta, fazer o diabo. Quando
toda a sociedade se converter ao materialismo, e tiver fé verdadeira
que morreu acabou então toda ela se subverterá, e uma guerra de
extermínio porá termo a tudo, para tudo recomeçar de novo. É assim,
doutor, que as civilizações, por mais de uma vez, têm caído na
barbárie, como o notaram Spengler e Lessing, para de lá ressurgirem
de novo, como Sísifo a rolar sua pedra morro acima, para vê-la
despenhar-se no abismo, outra vez! É preciso derribar o velho
caduco, para erigir em seu lugar o novo, o qual, por sua vez, será
desalojado por outra ordem, não melhor, mas diferente. Aqui estão,
doutor, as conseqüências neitzscheanas que prega não haver Deus, nem
sobrevivência da alma, nem prêmio e castigos póstumos!…
– Quem, pois, está em cima, continuou o Senhor X,
come, e quem está bem embaixo passa fome; e isso é em todas as
nações do mundo. Por isso Cristo disse: "os pobres tê-lo-eis sempre
convosco"… ao que acrescento: e os poderosos, também, sobre vós,
para vos escorchar! Quem tem razão é o arguto Trasímaco que dizia a
Sócrates: "Minha doutrina é que a justiça é simplesmente o interesse
do mais forte". E prossegue: "E não é fato que em toda a cidade a
força superior reside nos governantes? Ainda mais. Cada governo tem
leis adequadas a seus interesses: democráticas, nas democracias;
despóticas nas aristocracias, e assim por diante. Ora, quando assim
procedem, não declaram os governos que o que é do seu interesse
próprio é justo para com os súditos? E não punem a quem dessas
normas se desvia como réu de ilegalidade e injustiça? Portanto, meu
caro (Sócrates), o que digo é que, em todas as cidades a mesma
coisa, que é o interesse do governo estabelecido, é justa. E a força
superior, ao que eu presumo se encontra ao lado do governo. Donde se
conclui, por correto raciocínio que a mesma coisa, isto é, o
interesse do mais forte, é por toda parte justo"
(Platão em A República).
E assim, doutor, o forte se mantém no poder
enquanto pode, e, em caindo, exclama:
"Acta est fabula"!…
E com percuciente olhar fitando o médico,
argumentou o Senhor X:
– A dor é um fato universal e generalizado, não só
no nível humano, mas em todos os outros níveis de vida. Schopenhauer
estava certo: só a dor é constante, e a felicidade, transitória. Por
isso o filosofo acha que o sofrimento e a dor são positivos, e a
felicidade, negativa. Textualmente, aqui, do meu caderno de notas:
"Se a nossa existência não tem por fim imediato à dor, pode dizer-se
que não tem razão alguma de ser no mundo. Porque é absurdo admitir
que a dor sem fim que nasce da miséria inerente à vida e enche o
mundo, seja apenas um puro acidente, e não o próprio fim. Cada
desgraça particular parece, é certa, uma exceção, mas a desgraça
geral é a regra". (Arthur Schopenhauer, Dores do Mundo). "O
bem-estar e a felicidade são, portanto negativos, só a dor é
positiva" (idem). A existência, logo, "possui o caráter de uma
grande mistificação, para não dizer de um logro…" (Idem, idem). Por
esta causa, "o mundo é o inferno, e os homens dividem-se em almas
atormentadas e em diabos atormentadores" (Idem, idem, idem). Deste
modo "todo o homem acabará por chegar à conclusão de que este mundo
dos homens é o reino do acaso e do erro, que o dominam e o governam
a seu modo sem piedade alguma, auxiliada pela loucura e pela
maldade, que não cessam de brandir o chicote" E conclui o próprio
Schopenhauer: "Se um Deus fez este mundo, eu não gostaria de ser
esse Deus: a miséria do mundo esfacelar-me-ia o coração" E remata:
"Imaginando-se um demônio criador, ter-se-ia, portanto o direito de
lhe gritar mostrando-lhe a sua obra:" Como ousaste interromper o
repouso sagrado do nada, para fazer surgir tal massa de desgraças e
de angústias?"Assim também teria falado Adão na inspiração de Milton
(Paraíso Perdido, Canto X)":
"Deus criador, pedi-te por ventura
Que do meu barro me fizesses homem?
Pedi-te que das trevas me tirasses,
Ou me pusesses em jardim tão belo?
Como não ocorreu minha vontade
De modo algum para a existência minha,
De mais razão, de mais justiça fora
Que meu antigo pó me convertesse…".
E continuou o enfermo, após pausa meditativa:
– O corolário final destas verdades não pode ser
outro que não o suicídio. Contudo, não devo matar-me pelas minhas
próprias mãos, mas, pelo contrário, devo fazer estragos com elas,
tornando-me, por minha vez, num "diabo atormentador", forçando,
deste modo, a que outros demônios me matem… Por este motivo, o
suicídio fino, sábio, heróico é aquele do "gangster", do sabotador e
do guerrilheiro que se dispõem a viver em estado de guerra, como o
pregara Zaratustra. Este, doutor, o suicídio de que lhe falo, nobre,
alto e complexo. Sendo a dor e as desgraças positivas. Sábio é o
homem que as busca no seu grau máximo que é aquele que culmina com a
morte. Tolo é aquele que busca a felicidade e o gozo, pois são
negativos, e não passam de engodos com que a vida ilude o homem para
que, em vivendo, seja atormentado de contínuo. O senhor, em se
recusando a me matar, está procedendo como um "diabo atormentador",
pois sabe que com a morte eu seria feliz…, visto como na morte não
há dor.
E passando as mãos pelos cabelos grisalhos e
crescidos, concluiu o Senhor X:
– Contudo, não podendo eu participar deste nobre
suicídio do "gangster" e do guerrilheiro indômito, terei de praticar
o suicídio despretensioso e simples dos inválidos. Tendo eu, pois,
descoberta esta suma verdade neste leito de hospital, completo agora
o meu ciclo, desaparecendo para sempre!… Eu, doutor, num passado não
muito distante, costumava ter minhas reações místicas, cuidando que
os materialistas não passavam de uns lunáticos, e que a imortalidade
e céu deveriam de fato existir, para se corrigirem, lá, os males e
erros deste mundo. É que eu tinha em mente o padre Vieira que começa
assim um sermão: "O Batista em prisões! Logo há de haver outro juízo
e outro mundo. Provo a conseqüência. Porque, se há Deus, é justo; há
de dar prêmio a bons, e castigo a maus: no juízo deste mundo vemos
os maus, como Herodes, levantados, os bons, como o Batista,
oprimidos: segue-se logo que há de haver outro juízo e outro mundo:
outro juízo, em que se emendem estas desigualdades e injustiças;
etc." (Padre Vieira, Sermões, 11). E continua o padre mais adiante:
"Um dos principais fundamentos de nossa fé é a imortalidade das
almas, e a nossa justiça é a mais evidente prova da nossa
imortalidade. Se os homens não fossem injustos, pudera-se duvidar se
eram imortais; mas permite Deus que haja injustiças no mundo para
que a inocência tenha coroa e a imortalidade prova. Quem pode
duvidar da imortalidade da outra vida, se vê nesta maldade de
Herodes levantada ao trono e a inocência do Batista posta em
prisões?".
E fechando, o Senhor X, seu caderno de anotações,
prosseguiu, voltando-se para o médico:
– Como lhe dizia, estava com estes pensamentos de
Vieira martelando em meu cérebro, quando, ocorreu-me: se o padre
estiver certo, deve haver também um céu para os cavalos, visto que
estes brutos sofrem, neste mundo, a tremenda injustiça de serem
castrados, de trabalharem sob chicote, por nada, a vida toda, e de
irem para o corte, na velhice, quando imprestáveis. E como não me
cabe na cabeça possa haver um céu de cavalos, outro de burros, outro
de bois, etc., desisti da idéia de que, como quer o padre, possa
haver algum céu de homens, só porque João Batista, sendo justo e
bom, fosse preso e morto, e Herodes, injusto e mau, permanecesse no
trono. Eu também poderia usar os mesmos argumentos do padre dizendo:
se existe Deus, há de ser justo; e se o é, há de premiar os cavalos,
os burros e os bois, metendo-os nos céus, e arremessando os
carreiros e os carroceiros todos nos infernos!… Kant caiu também
nesta tolice, fazendo sorrir, complacentemente, a Schopenhauer. Não
conseguindo chegar Kant a Deus na sua "Crítica da Razão Pura", a
este chega pelos caminhos do padre Vieira em sua "Crítica da Razão
Prática", ou seja, deduz a imortalidade da alma da necessidade de
recompensa.
– Os que nascem aleijados e deformados nesta vida,
prosseguiu o Senhor X, dizem, os espíritas, que é por causa dos
pecados de outras vidas. E os animais monstrengos que morrem no mais
absoluto desamparo, e só por isso não perambulam, por aí, como os
deformados humanos, que pecados pagam? Por causa destas
considerações, abrandou-se-me o furor místico e passei a ser o
verdadeiro materialista que o doutor forçadamente está conhecendo.
Volto a afirmar que: morreu acabou! O homem é o que criou Deus
imaginando-o, segundo sua imagem e semelhança! A alma e resultante
das funções orgânicas, e cessadas as funções, cessa a alma. Tanto
faz ser um São Francisco de Assis ou um Lampeão nesta vida, que o
resultado é invariavelmente o mesmo – o pó, o nada. A moral que se
infere destas premissas é a de Trasímaco, de Machiavelli e de
Nietzsche, da força e da astúcia. Astúcia é o mesmo que engano,
mentira, ludíbrio, falsidade. O homem vive para a dor e para a
morte; mas enquanto vive, deve fazê-lo a custa dos outro, se
possível! Trabalhar é para os tolos… que esta é a lógica do leão, do
lobo e da águia que espreitam suas presas para caírem sobre elas. Eu
tenho razão, doutor: morreu acabou! E eu é que não vou ficar aqui,
perdendo o meu tempo em viver, quando me posso descansar, e já, no
pó, no nada, no não-ser!…
E dando ao expressivo e versátil rosto um ar de
suplicante, continuou o Senhor X:
– Doutor! Ajude-me a morrer!… Só o senhor pode
fazê-lo sem dores para mim… A vida é a maldição que recebi um dia
dum Criador cruel que se compraz na agonia de suas criaturas!
Conquanto esteja eu na metade da vida, já me sinto um Ashverus
curvado ao peso duma eternidade. Schopenhauer estava certo ao
perguntar: "Por quanto tempo ainda seremos conservados neste
muito-barulho-para-nada, nesta aflição contínua que nos leva à
morte?" Perguntando o rei Midas ao deus Sileno qual o melhor destino
de um homem, teve isto por resposta: "Miserável raça de um dia,
filhos do acidente e da aflição, por que me forçais a dizer o que
bom fora não fosse dito? O melhor dos fados é inacessível – não
nascer, não ser. Depois, o melhor fado é morrer cedo!" Até Salomão
que vivia em orgias e banquetes contínuos com mil mulheres, acabou
concluindo ser melhor o dia da morte que o do nascimento (Ecl. 7,
1). Se até ele sendo inteligente, e rei, e rico, e gozador da vida
achou isso, por que devo eu viver?
E quedando-se a olhar uma mancha azul de remédio
na colcha branca do seu leito, filosofou o Senhor X:
– A vida é uma tragédia eterna e infinita em que
um ser esposteja e devora o outro para gozo de Deus, porque, se ele
fosse pai, e não, carrasco, ter-me-ia feito a mim insensível para
não sofrer! Uma vez que me pôs por sina atroz o ser comido dos
homens e dos vermes, que o fosse, então, sem terrores, martírios e
fadigas. Ainda que inocente (e se culpado, onde a culpa?), Deus me
condenou às galés da vida, quando me podia ter deixado continuar na
imobilidade do não-ser!… Deus! Ó Arquétipo eterno do sadismo e da
maldade! "Como ousaste interromper o repouso sagrado do nada, para
fazer surgir tal massa de desgraças e de angústias?" (Schopenhauer).
Uma vez, porém, que a Suma Crueldade me soprou o movimento, a razão,
o melhor dos fados é chegar agora ao fim! Um pouco de clorofórmio,
então, na minha veia… Ali está a seringa… e a agulha de injeção!…
Complete essa caridade, sendo bom, ao menos uma vez! Eu vivo…; e a
vida me rala o coração, e punge, e gela o peito, pior do que sentir
o ferro de Longuinhos abrindo o lado de Jesus!… O universo é o
inferno único onde à vida é torturada até a extinção do ser que a
porta. Por este motivo, do vegetal ao homem, todo o ser vive à custa
de outro ser que é atormentado e morto, donde vem que a vida é toda
feita de martírios. Disto se conclui: ou não há Deus, como eu
afirmo, ou ele deve chamar-se: o Sádico…
– Que Deus é sádico, doutor, todas as religiões o
entenderam, claramente, desde o início, e por esta razão, todas,
sempre, lhe fizeram sacrifícios. A antropologia, alumiando o
interior das cavernas pré-históricas, pôde constatar a extensão de
todo o horror: o sacrifício humano foi o expediente usado para
aplacar a ira do deus, sempre sedento de sangue, e desejoso de
torturar suas vítimas. Os homens mais inteligentes de todos os
tempos e de todos os lugares, ainda que isolados entre si, chegaram
à mesma conclusão: observando a natureza, descobriram a constante
temática que domina todos os movimentos dessa sinfonia-mor. Deus na
natureza compõe variando quatro temas básicos: de uma parte, em
tonalidade maior, astúcia e força; da outra, em tonalidade menor,
martírio e morte! Logo, arrancar pela força, uma criancinha dos
braços maternos para sacrificá-la, deve ser, de fato, estupendo para
esse deus sempre famélico, insaciável, formidoloso!
"Moloch adiante vem, monarca fero,
Tinto de humanas vítimas no sangue,
Nunca farto de lágrimas maternas,
Posto que – dos tambores, dos adufes
C’o turbulento estrondo, – não se ouvissem
Os gritos das misérrimas crianças
Arrojadas (oh! dor!) às labaredas
Em honra do seu ídolo iracundo!"
(Milton, Paraíso Perdido, Canto I).
– Que gozo inaudito prossegue o enfermo, não
sentirá o Todo-Poderoso, ao ver a mãe arrancar os próprios cabelos.
Enlouquecida pela dor. E ver o pai rasgar as vestes, e escabujar no
chão, tentando achar no peito o próprio coração para despedaçá-lo! Ó
nojo! Ó maldição!…
E mantendo ainda no semblante a expressão de asco,
prosseguiu o Senhor X:
– A história da humanidade, desde que o primata
superior se levantou nas patas posteriores, está cheia de
flagelações e de martírios, e a própria Cruz de Cristo foi
interpretada como um holocausto exigido pela Justiça Divina que
precisava vingar-se da desobediência de Adão. Primeiro faz Deus a
Adão ignorante, ingênuo, sugestionável, falível; como se isto não
bastasse, mete no paraíso terrenal a serpente diabólica para
tentá-lo. Caído Adão vem-lhe a sentença baseada na justiça do Leão!
E se Deus não é Leão, é Águia pela astúcia e pela rapina! Ou melhor:
Deus é Leão alado com cabeça maquinadora de homem! Aqui está a
imagem do Deus verdadeiro – a Esfinge – a dizer a Édipo: "Homem
efêmero, viageiro obscuro, sombra que passa, pó que anda e só por
isso se cuida ser!… Eis-me sobre ti, e por isso desespera!"
– Por esta causa, doutor, a única piedade que
conheço é a morte! A idéia da sobrevivência da alma far-me-ia pensar
na eternidade da vida, e, por conseguinte, na da dor, bem conforme
com o sadismo divino. As próprias religiões nascem do anseio de
sobreviver, e é por isto que elas estendem a conservação do
indivíduo para além da morte. Com este artifício solenemente
insuflado por Deus, sua possibilidade de gozar a tortura do criado
se amplia, porque, no ponto em que a razão enfraquece o instinto de
conservação e o anula, a asnidade religiosa o reforça, fazendo com
que os sofrimentos aumentem, estoicamente, não só os horrores desta
vida, senão ainda os terrores de se perderem na outra, em que cuidam
que a dor se recrudesce como que elevada de potência. Assim se
sofre, não só as dores reais desta vida, como também, por
antecipação, as imaginárias da outra.Tal o pesado tributo que pagam
os religiosos por ter fé e crer. Todavia, nós, homens de ciência,
como o senhor e eu, estamos livres desse ônus opressivo, e sabemos
que, contra o tenacíssimo instinto de sobreviver, está à razão que
pode vencê-lo de vez. Temos a consciência de que, sendo o instinto
de conservação o limite, podemos transpô-lo para sempre. Daí o
ter-lhe dito eu que o fim supremo da sabedoria é o nada! Porque a
sabedoria se ocupa de vencer os instintos todos, e o mais tenaz
deles, é o de conservação. Vencer a este é suicidar-se, e só a
sabedoria plena pode fazê-lo, em razão do que eu digo que além do
extremo limite do saber está o suicídio, e, com este, a doce entrada
no nirvana do não-ser!
– Mas chego a estremecer, doutor, quando considero
que as religiões podem estar certas, e que a morte não é o fim desta
vida; porque, se Deus pode gozar, eternamente, a tortura do criado,
que razão teria ele para permitir que a morte fosse o fim? Quando
ele pode continuar torturando o espírito no além túmulo? Como não
sofrer, se eu continuar vivendo após a morte? Se houver, então, tal
outra vida, será que tenho de prosseguir no meu suicídio,
aniquilando-me, de contínuo, até alcançar o cobiçado nirvana do
não-ser? Teria enxergado isto, Buda, para recomendar a morte por
partes, pelo que os desejos deviam ser aniquilados um a um, até que,
finalmente, acabasse o mesmo desejo de viver? Será que após a morte
física, hei de continuar morrendo pelos tempos a fora, até que, no
fim de tantas mortes relativas e parciais, encontre a morte eterna?
A ser verdade o que apregoam as religiões (e tremo de o pensar!), a
mim me cumpre continuar morrendo, e, de morte em morte, chegar, um
dia, ao fim, ao eterno repouso do não-ser! De nada me valeria alguém
me provar que há outra vida além desta, sem demonstrar-me à causa da
dor…, visto que até Cristo, se é que vive e ama, há de estar
sofrendo!… Depois, porém, tornando a mim do susto que tais
tormentosos pensamentos me causam, raciocino deste modo: se tudo
veio do caos e do nada formal, a este começo terá de recair a
criatura rebelde que se volta contra si mesma, praticando o
auto-aniquilamento. Mas falo só desta vida, que não de outras
hipotéticas e impossíveis. A alma é função do organismo; não pode
ser de outro modo; morto o corpo, estará morta a alma. Meu
sobressalto é pesadelo vão, é sonho de louco, contra o qual a razão
minha se rebela, recusando-se a o aceitar. A morte física tem que
ser o fim.
E depois de suspirar numa pausa, continuou o
Senhor X:
– O senhor não declara, mas eu sei que é assim que
pensa, que os santos e os demônios só podem caber nos bestuntos dos
estúpidos. Portanto, somente toleirões crêem na existência deles.
Ora, o senhor e eu não cremos em santos e demônios; logo, não somos
asneirões. E se numa parte colocarmos os religiosos, os estúpidos
crendeiros, com suas asneiras, na parte oposta estaremos nós, os
superinteligentes, com nossa sabedoria. A pedra-de-toque com a qual
se há de avaliar os homens, é saber se crêem ou não, em santos e
demônios. Afirmando que crêem, são estúpidos; se não crêem, sábios.
O senhor e eu, por conseguinte, somos Sábios: quem o suspeitaria? E
possuímos a sua ciência, porque estamos no limite extremo do saber,
além do qual é o nada. A quem, como nós, chegou até aqui, só falta o
salto final no não-ser. Eu o faço agora, e o senhor, quando as
coisas lhe correrem mal. Por isso, doutor, eu vou receitar-lhe isto,
embora seja o senhor o médico, e eu, o doente; eis a receita: não se
esqueça nunca de ter sempre à mão uma dose mortal de algum veneno
fulminatório, porque nenhuma coisa pode perturbar a placidez e a
serenidade bovina daquele que sempre traz consigo uma ampola de
ácido cianídrico, para refugiar-se na morte, a qualquer momento,
quando alguma fatalidade, como a tortura ou o câncer, o atingir.
Então, é só mastigar a ampola…, e cair no nada "per omnia século
seculorum"!… Aí, então, se é eternamente feliz, porque na morte não
há dor!…
– Buda, aquele grande comedor de arroz, continuou
o Senhor X afadigado criou uma doutrina complicada para entrar no
nirvana do não-ser, pela anulação de todos os desejos, através das
reencarnações. Ora bem. Todos os desejos nascem do desejo de viver;
vencer, portanto, a este desejo-mor, é cortar a hidra de todas as
cabeças de um só golpe. Quem é que, podendo erradicar de vez uma
árvore, vão perder tempo em podar-lhe os galhos? Vem cá, Buda: tanto
trabalho e canseira, para nada?! Eis, aqui está, quem chega a nada,
sem canseiras e trabalhos nenhuns!…
– Como vê, doutor, sou muito mais budista do que o
próprio Buda, e mais radical do que Schopenhauer, porque tenho
alcançado isto: a vida é refeita de dores e tragédias, e só a morte
não dói!…
Que prodigioso pensador é esse Senhor X – pensava
o médico. É preciso salva-lo a todo custo, visto que sua vida é
sumamente preciosa! E, rápido, deu com uma solução que pôs logo por
obra, ao atalhar:
– Espere, Senhor X: você vai dormir um sono muito
calmo, tranquilo, sereno, balsamificante; e quando acordar estará
outro, mudado, otimista, desejoso de viver!
A estas palavras do médico, o Senhor X se pôs em
guarda; e fazendo o gesto da banana, retrucou, de pronto:
– Aqui!… que o senhor me faz dormir! Conheço de
sobra essa manha! O senhor me faz dormir com palavras suaves,
repetidas e monótonas, e depois me pergunta, estando eu dormindo, se
estou escutando a sua voz. E eu respondo que sim, com um aceno de
cabeça. Daí, o senhor vai, e me planta uma porção de sugestões,
dentre as quais, que eu gosto da vida, que sou um biófilo, que quero
sarar, viver, que respirar… é a coisa mais gostosa deste mundo… Nada
disso comigo! Não durmo! Suas arengas ser-me-iam inúteis, visto que
me barriquei contra elas! Não sou homem de sugestão, mas de
persuasão; sou homem de racionalidade, não, de fé. E a hipnose é
sugestão, e a sugestão é fé, e a fé é religião, donde vem que as
três são afins e têm um fundamento comum, que é o princípio da
autoridade, opondo-se, frontalmente, à persuasão ou ciência, que é a
aceitação duma ideia mediante o exame racional dos argumentos e das
provas. Polarmente, opondo-se a isto, a sugestão é a aceitação duma
ideia sem exame algum, pura e simplesmente, baseada na autoridade de
quem fala. Segue-se, logo, que a hipnose é pura fé, em nada se
diferindo das demais em que se alicerçam as religiões. Não há
hipnose científica, e sim, apenas a explicação científica para a
hipnose, porque esta é, em seu próprio fundamento, mística,
primitiva, crédula, infantil, ingénua.
– Então, doutor, por causa desta verdade sem
contestação possível, essa sua "conversa" me insulta, visto
tomar-me, o senhor, por estúpido crendeiro que pode ser conduzido,
de cambulhada, por sugestão. Não foi isso, precisamente, que
dissemos dos religiosos que crêem… em santos e demónios, só porque
alguma suposta autoridade declarou que eles existem? E como é que o
senhor quer agora me submeter à sua autoridade, fazendo-me aceitar
tudo de fé, sem discutir, e sem as provas e demonstrações lógicas?
Por que devo crer no senhor, e não, em Cristo? Acaso não dissemos
serem papalvos todos os que crêem em Cristo? E por que não serão
otários os que crêem no senhor, na sua léria hipnotizante, nessa sua
conversa mole, chocha, insípida, monótona, vazia, que faz aos
crendeiros dormir? Eu me ri de Cristo, e, pela mesma razão, me rio
agora do senhor, visto que ambos pretendem guiar-me em rebanho, e de
antolhos, ao som de uma flauta qualquer! Aqui!… que eu durmo! O
senhor vai matar-me: se o não fizer directamente, como lhe peço,
fá-lo-á pelas minhas próprias mãos, não tenha dúvidas sobre isso!…
Vendo o médico ser impossível dissuadir o Senhor X
da ideia do suicídio, abandonou o quarto para providenciar outros
meios de evitar que tal se consumasse. Mas o Senhor X, arguto,
prevendo isso, atirou-se pela janela do edifício, vindo a quebrar o
pescoço contra o calçamento…
Jota Há