Ao publicar este pequeno poema , na página da APP( Associação
Portuguesa de Poetas )...e mediante respostas seguintes dos
amigos , Sustelo e Benilde Fontinha ...sugeri, que fizéssemos
uma continuação...pois creio todos nós devemos ter um sentimento
especial pela nossa rua , onde estão por vezes guardadas belas
estórias de amor , ou de dor , e mesmo sem ter um jardim, pelas
janelas do nosso olhar , uma beleza rara
plantada nas bermas, e as nossas pedras tem mais brilho, ali
onde se escondem os nossos passos todos os dias e ao ver-nos
passar , até elas ( as pedras) fazem-nos uma vénia num
cumprimento silente!!
Sorriem à minha chegada...lapidam um brilho de saudade...e do
caminho à entrada... ai que alegria me invade !!
Comentário: Cecília Rodrigues
Imagem de fundo "Chaplin_auto retrato"formatado por Cecília
Fonte _Google
Da Minha Janela
Maria Petronilho
De manhã vê-se
o céu vermelho, por cima das vivendas baixas, para os lados da
Ponte, dourando a cúpula do Seminário.
Aos poucos desce uma poeira amarela e brilhante cheia de
matizes, recortada pela escura sombra das velhas casas brancas,
cor-de-rosa e amarelas.
Á frente de cada prédio há um jardinzinho onde cada um nos
mostra o que terá dentro de si:
Cultivam-se couves, flores ou crescem ervas bravias.
Muito cedo tudo recende um particular aroma que não existe em
mais nenhum lugar da terra e reluzem indistintas sobre todas as
plantas, como pérolas, gotas de orvalho.
Depois começa a passar gente: primeiro os operários, com a pasta
do almoço na mão, depois os estudantes com os livros debaixo do
braço.
O sol aquece e a água depositada no chão e nas ervas evapora-se.
As plantas parecem agora baças e empoeiradas.
Os rapazes e raparigas das escolas secundárias parecem um
carreiro de formigas atentas e carregadas de uma ciência
escondida.
Apitam as sirenes das fábricas.
Mulheres de cestas de verga ou ráfia apressam-se para as
compras, os carros sentem-se incomodados na estreita linha entre
os passeios e apitam..
Sai de cena o guarda-noturno com o seu molho de chaves
tilintando à cinta e os olhos cobertos de sono.
Outro aparece, ao que parece pela ordem pública nada mira, e
anda rua acima rua abaixo passeando a gorda barriga, as mãos
inermes cruzadas atrás das costas.
A meio da manhã, parafusos e engrenagens rolam, acalmam-se os
ruídos, gira que gira o dia.
Pelo meio dia salta a manivela e toda a gente corre que a
barriga chia.
De tarde, a rua na modorra vai cumprindo hora após hora o seu
ritual, sonolenta.
As persianas baixas. As vizinhas lavaram a loiça e espreitam
como gatas atrás das cortinas.
Um ou outro par afoito desafia o comentário certo.
Num repente cai a noite, mal o sol tomba atrás do prédio mais
alto.
Aproveitando a súbita penumbra, quem não olha não vê, os
estudantes de regresso a casa, chegam-se mais – ele e ela
murmuram algo e lá se dissimula na sombra a fugaz papoila de um
beijo.
Os mais novos chispam centelhas de desafio no cigarrinho
escondido na palma da mão; endireitam o pescoço enquanto
pigarreiam a virilidade emprestada pelo gesto enfim ousado.
Muitos vão sobrecarregando os livros de cabeça baixa, como
muares ruminando fora de hora cada palavra proferida na aula –
levam toneladas de sabedoria às costas e parecem subir a rua de
rastos.
Os marinheiros, colarinho azul e branco, barrete atirado para a
nuca, parecem com fome de vento e passam assobiando.
Um clarão amarelo, depois branco, hesita mas fica – os
candeeiros acendem-se lá no alto.
Sobe de todos os lados um aroma de guisados, se cozidos, de
frituras que se misturam no ar a brincar ao desafio com as
barrigas vazias.
Num tempo, o primordial desígnio de viver para para comer ou o
inverso, fica reinando. Adivinha-se o nham nham nham mascando
uns melhor outros pior o que tanto lhes custou a alcançar –
jantar na mesa a horas das ave-marias.
Descem os sacos do lixo, que são discretamente colocados na
beira do passeio e as mãos escondem-se atrás dos aventais como
se assim se aventasse o olhar do último a quem se imita o gesto.
Era a hora por que os cães e os gatos vadios tanto esperavam –
num instante a rua vazia está pejada de restos e seres furtivos
e desconfiados, lazarentos, desgraçados.
Acenderam-se entretanto os olhos amarelentos das janelas.
Cada um cala-se ou comenta o que fez – sobretudo o que não fez e
gostaria de ter feito mas mais não se diz porque falar demais é
um papão que anda solto e pode estar escondido dentro do seio do
teu parece-que-melhor-amigo.
Uma a uma cada casa adormece – o cansaço às vezes traz consigo a
insónia – mas que remédio para poupar energia senão rebolar-se a
insónia onde se rebola a rebeldia – no escuro?!
Os últimos carros deslizam, à larga, ninguém que os ameace de
atropelamento nos passeios desertos.
E tudo é silêncio. Excepto os mais fracos que berram na voz do
vinho o que a todos atravanca o espírito mas só diz em voz alta
o bêbado e em voz muito baixinha o que bebeu tanta esperança
para mitigar a dor da revolta que se atreve a infringir o
universal da quietude do faz-de-conta.
Maria Petronilho
RR
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